As contribuições dessa arte para os movimentos de luta social e os preconceitos que envolvem a street art
Por Lucas Dias e Fernanda Umezaki
A arte do grafite e sua história de resistência
O grafite como arte urbana e crítica não é recente. Pelo contrário, sua origem remonta ao Império Romano, de quando há materiais que mostram que mesmo naquela época, nas cidades de Roma e Pompéia, já havia artes críticas às elites estampadas nos muros de cidades. Apesar disso, o grafite como o conhecemos propriamente hoje em dia é bem atual.
A origem desse novo grafite foi por volta da década de 60, e o contexto do mundo daquela época não foi nada indiferente com o nascimento dessa arte. Nesse período da história, as sociedades mundo afora estavam em um momento de forte turbilhão social, com muitos acontecimentos importantes ocorrendo: Guerra do Vietnã, Guerra Fria, ditaduras na América Latina, assassinato do líder do movimento antiracista, Martin Luther King Jr.
Em resposta a esses eventos marcantes, crescia também o movimento da contracultura, que abraçava valores liberais e sociais, mas que também tinha um fervor de indignação, de resistência, de protesto e de rebeldia.
Assim, com toda essa intensidade político-social rodando o mundo, muitos sentimentos dos mais variados tipos precisavam ser expressos. E com o crescimento cada vez maior das cidades e da indústria, foi nos grandes centros urbanos que essas mobilizações e ativismos se concentraram, possibilitando o nascimento das artes urbanas: o Hip Hop, o Break Dance e o grafite.
Projeções sociais e manifesto de rua
A visibilidade desse tipo de arte é facilitada justamente por ocorrer em áreas que, de certa forma, “libertam” as produções de áreas confinadas, como no caso de museus, galerias e casas de exposições. Isso proporciona ao grafite uma abordagem e um alcance diferente das vistas nessas áreas e, por isso, as manifestações das minorias se fortalecem.
Mesmo com diferentes vertentes e ocorrendo de formas distintas, variando entre expressões espontâneas e murais mais elaborados, todas elas partem da ideia de direcionar pensamentos dos mais variados tipos para a arte. Isso vai desde indignações com o sistema político vigente e com a economia, até desencontros familiares e desilusões amorosas.
Alguns movimentos anteriores explicam mais profundamente a relação entre a street art e as denúncias e insatisfações. O que se observa durante a década de 60 é um período de efervescência cultural, política e social, do woodstock, dos movimentos contraculturais e contra guerras. Nesse cenário, o desenvolvimento de uma arte tão impactante quanto o contexto acabou ocorrendo de forma natural, quase como uma consequência.
A marca e a escolha dos “signos” também são de fundamental importância para direcionar a produção artística. Este é o caso de Eurivalter Cupertino, grafiteiro e rapper de Juazeiro-BA, que explora a Caatinga com a intenção de enaltecer o bioma ao trazer a fauna e flora para compor seus murais. “Meu grafite fala sobre o semiárido e eu trago muito da fauna e da flora, as cores da Caatinga, as cinzas do semiárido de uma vegetação super inteligente. Sou muito fã da resiliência do nordeste”, complementa ele.
Assim, o que será desenvolvido na pintura decorre do uso da arte como manifesto. E isso gera um processo de territorialização e conquista de novos espaços e locais de fala, o que é justamente o que grupos oprimidos e guetificados buscam em sociedades desiguais.
Como todo tipo de arte, o grafite apresenta também uma carga de subjetividade, funcionando como potencializador de vozes e pautas de diferentes grupos. É através disso que o movimento negro e outras minorias étnicas, como indígenas, além de mulheres e brancos pobres, encontram voz para projetar suas angústias, reivindicações e o próprio cotidiano.
A aparente facilidade existente neste tipo de produção artística, que não necessita de uma tela e materiais mais custosos, abre caminho para uma arte mais democrática. Dessa forma, o grafite é identificado como o canal de um discurso veiculador de protestos sócio-políticos de uma comunidade que encontrou na arte um escapismo revolucionário.
No fundo, é sobre isso a intenção principal do grafite e da ideologia street art: propor intervenções na sociedade e nos nossos costumes para que as coisas melhorem. “Se a gente quer mudar, a gente tem que dar nossa opinião, a gente tem que dar as caras”, diz Ericsson Magnavita, ativista e trabalhador liberal da comunidade São Remo, em São Paulo.
Combate aos estigmas e preconceitos envolvendo a street art
No entanto, apesar da importância dessa arte para a sociedade atual enquanto trabalho estético e crítico, o grafite ainda é frequentemente mal visto por muitos. Por ter origem como uma arte urbana e periférica, ele é muitas vezes visto como marginal, como uma técnica inferior àquelas que são admiradas há séculos.
Como o Eurivalter diz, “é só a estética, o formato de arte, não importa se é uma lata de spray ou um pincel”. O que importa mesmo é a arte e a mensagem por trás - e isso parece ser justamente a grande questão dessa marginalização. “Tem muito preconceito ainda quando a gente liga o grafite ao Hip Hop, ao Rap, a essa cultura mais underground, mais jovem, de contestação social”, continua ele.
A crença de que essa arte, quando associada a uma abordagem político-social, é inferior não é somente algo que vem de cima para baixo nas cadeias sociais. Apesar de paradoxal, muito do preconceito é propagado nas próprias periferias urbanas, justamente o berço desses movimentos. “O estigma do grafite como algo feio, desnecessário e de menos valor parte também das próprias comunidades, das próprias periferias, o que não é justo”, afirma Ericsson Magnavita.
Para superar isso, Ericsson propõe ‘mais informação’. Para ele, é preciso que todos entendam a intenção por trás do grafite e que saibam do seu potencial de transformação, tanto enquanto arte estética quanto como um espaço visual para críticas sociais.
Eurivalter, por sua vez, complementa que os grafiteiros precisam ‘levar seu próprio trabalho bem a sério’, que essa arte precisa ser feita com organização e dedicação. Dessa forma, ao demonstrar que o grafite é algo digno e comprometido, o público consequentemente vai entender que isso “não é um passatempo, é minha fonte de renda, é meu trabalho, e então eles começam a respeitar isso”, afirma ele.
Para aqueles que estão interessados em saber mais sobre o grafite e experienciar um pouco a sua prática, a recomendação de Ericsson é que a pessoa contacte algum grafiteiro próximo de sua área. Ele diz que o meio do grafite é bem inclusivo e que, em geral, as pessoas envolvidas nesse ramo são mente-abertas e gostariam de espalhar essa ‘semente de arte’ pelo Brasil.
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