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  • Ricardo Thomé

Taekwondo na periferia: uma luta que vai muito além do esporte

Arte marcial sul-coreana se estabelece como ferramenta social nos projetos do Mestre Claudio Perez


Por Ricardo Thomé


[Foto: Reprodução/ Instagram @equipeclaudioperez]


O Taekwondo é uma arte marcial da Coreia do Sul. De origem guerreira, é esporte olímpico desde as Olimpíadas de Seul em 1988 e hoje tem como objetivo maior o equilíbrio harmônico de corpo e mente. Afinal significa “Caminho (Do) dos pés (Tae) e das mãos (Kwon) através da mente''. No combate, são usadas proteções no corpo todo e a pontuação se dá através de chutes e socos que devem ser aplicados no colete (um ponto) e no capacete (dois pontos), sendo proibidos o soco no rosto, o chute nas pernas, a indisciplina e o ato de derrubar o oponente.



No Brasil, o esporte foi introduzido em 1970 pelo hoje Grão Mestre Sang Min Cho, e com o passar dos anos foi se popularizando, até que, em 1986, chegou ao conhecimento de Claudio Perez, um menino de 12 anos que tinha vindo da Bahia com a mãe. “Quando eu tinha nove anos ela sofreu um acidente grave de atropelamento na avenida Paulista. Ela ficou totalmente de cama e eu tive que cuidar. Ia pra escola, voltava e era eu sozinho com ela. E como presente ela me deu o Taekwondo. Tinha uma academia muito próxima de casa, em Santa Cecília”, conta o hoje Mestre de Taekwondo, hexa campeão brasileiro e presidente da Fapemi (Federação Paulista de Artes Marciais Interestilos).


Mestre Claudio Perez com o introdutor do Taekwondo no Brasil, Grão Mestre Sang Min Cho [Foto: Reprodução/ Instagram @equipeclaudioperez]


Mestre Claudio Perez com seu primeiro mestre, o Mestre Kim. [Foto: Reprodução/ Instagram @equipeclaudioperez]


Projetos sociais e a esperança de mudança

Com inspiração em Bruce Lee desde pequeno, o Mestre Claudio Perez conta que, após o falecimento de sua mãe, aos 18 anos, só restava para ele o Taekwondo. “Eu fiquei totalmente sozinho. Não tinha grana pra fazer faculdade, não tinha grana pra nada. Só tinha o Taekwondo, e com o Taekwondo eu consegui ser campeão, treinar muito e comecei a dar aula. Eu entrei aqui na Competition [academia particular do bairro de Higienópolis, onde foi realizada a entrevista] com 18 anos e estou aqui até hoje”, explica.

Assistindo à própria história de superação, o jovem Claudio acreditava que poderia não ser um caso isolado e decidiu ajudar outros como ele, criando, já na década de 1990, o Projeto União. “Imagina: você não tem absolutamente nada, não tem pai, não tem mãe, não tem estrutura familiar, não tem dinheiro e consegue virar um campeão e um professor bem conceituado, viver com dignidade, até mais do que muita gente. Eu quis proporcionar isso para as outras pessoas, pra criançada em geral”. Com o auxílio da Competition, Claudio começou a dar aulas gratuitas na Penha, alugando um galpão e dando aula, inicialmente, para 150 crianças.


Mestre Claudio em 1997, quando foi dado início ao ‘Projeto União’.

[Foto: Reprodução/Instagram @equipeclaudioperez]


Com o passar dos anos, os projetos foram se multiplicando e se ramificando pela periferia de São Paulo, existindo até hoje. “Por conta da pandemia, a gente está com mais ou menos oito locais de aula começando, mas antes eram mais de 25. A Covid-19 quebrou as pernas de todos os projetos, estamos tendo que construir tudo de novo”.



Mestre Claudio Perez (destaque) e sua equipe.

[Foto: Divulgação/Revista Taekwondo Equipe Claudio Perez]


Apesar disso, Wellyngton Mattos, aluno captado pela Equipe Claudio Perez em 2015 no ‘Temático de Artes Marciais’ da Cidade Tiradentes, valoriza as oportunidades que já foram dadas. “Eu me sinto muito feliz por estar participando disso junto com ele. Eu acho maravilhoso porque, na periferia o que a gente tem mesmo é o futebol, as crianças ficam largadas na rua, não todas, mas a maior parte é muito fácil entrar em algo errado”.

Ele revela que Perez já formou mais de três mil faixas pretas desde o início do projeto, e que o tempo não mudou seu prazer pelo ofício. “Hoje, a gente tem um projeto lá no Jardim Cabuçu, chamado 'Lutando por Você'. Pô, a molecada adora, mano. E o Mestre Claudio deu uma aula ontem [4 de maio], e você via o olho da criançada brilhar. E o dele também! O mais engraçado e o mais legal é que o olho do Mestre Claudio brilha quando ele olha pra essa parte. Então é sem palavras!”, diz, empolgado, o jovem de 22 anos que hoje é professor ao lado do Mestre.



A Equipe Claudio Perez participa de vários projetos. Alguns deles, que abrangem uma população mais carente, necessitam de autorização para que sejam dadas aulas, devido à presença da milícia local. É o caso do ‘Lutando por Você’, citado por Wellyngton. Há, também, locais na Mooca e no Tatuapé em que projetos de Taekwondo com apoio do Governo de São Paulo têm se estabelecido, em escolas, clubes-escola e centros esportivos do estado. [Foto: Reprodução/Instagram @equipeclaudioperez]


Muito além de uma arte marcial

Wellyngton conta com orgulho sua trajetória até virar atleta. “No início achei que era karatê, aí eu treinei e descobri que era muito mais pegado. Eu gostei, me interessei, entrei, comecei a treinar com o Professor William, que é um dos professores do Mestre Claudio, aos 15 anos, e fui treinando até virar faixa preta, professor e atleta do Corinthians”. Ele completa explicando que o Taekwondo lhe trouxe muito mais do que golpes e faixas. “Com o Taekwondo eu aprendi muito companheirismo, a ser bem compreensivo com as pessoas, a ter um pouco mais de calma.. E me ajudou a controlar muitas coisas. Aprendi a ser um pouco mais educado…muitas coisas que eu aprendi com o Taekwondo eu levo pra vida toda”.


Wellygnton começou em 2015 e já é faixa preta.

[Foto: Reprodução/Instagram @et.erasmotkd]


Ainda sobre os projetos, sua implementação pode depender da iniciativa pública ou privada. No caso da pública, existe um processo denominado "chamamento", que ocorre como uma licitação e é extremamente concorrido. A partir deste, consegue-se apoio do órgão governamental, que seleciona o lugar. Já na ação privada, pode ocorrer o patrocínio para a instalação, como foi com a Competition no Projeto União, ou um acordo para que aulas sejam feitas em uma faculdade, por exemplo, para alunos e para a população da região, sempre com parceiros.


Uma vez dentro do projeto, os jovens têm o direito a receber, além das aulas, uniforme, proteção, competições e os que se formam faixa preta podem dar aula em outros projetos da prefeitura ou do Governo. Em alguns casos, recebem também alimentação e transporte gratuitamente. Esse auxílio é importante em qualquer situação, mas para o caso de os alunos seguirem seu caminho no Taekwondo, passa a ser crucial, uma vez que o processo é longo e caro. No Taekwondo, cada faixa tem um currículo e o nível técnico aumenta com a graduação. Mesmo após chegar à faixa preta (em média cinco anos), que é o 1° DAN, há um longo percurso. São 9 “DANs”. Para ir para o 2º DAN mais dois anos, para o 3º DAN mais três anos, e assim vai até o 9º, com um valor muito alto para as trocas. Para virar um mestre (4º DAN), a média é de 30 anos.


Exemplo de carteirinha para controle das graduações.

[Foto: Arquivo Pessoal/Ricardo Thomé]


Quando perguntado sobre os benefícios do Taekwondo, Mestre Claudio fez questão de frisar que esses não se restringem à periferia “Vou dar exemplos diferentes. Aqui [Higienópolis], a exigência já é diferente: é você se dar bem financeiramente, profissionalmente, fazer uma faculdade…isso é uma cobrança que desde os oito anos é muito estressante, e eu percebi com algumas pessoas que se tornaram faixa preta aqui na Competition que se tornaram profissionais conceituados e que falam pra mim que o Taekwondo fez com que eles conseguissem alcançar esses objetivos com mais equilíbrio. A palavra seria equilíbrio mental. O Taekwondo ajuda a tirar um pouco dessa carga das pessoas”.

Para Wellyngton, assim como para Claudio há quase 40 anos, o Taekwondo foi uma salvação, e ele relata a emoção que sente ao pensar nos projetos. “É muito importante e gratificante ver um trabalho como o do Mestre Claudio porque é uma oportunidade a mais que a gente tem. E quando a gente fala de projeto social, a gente atende tanta gente que a gente até se emociona. É muito legal isso que o Mestre faz, eu sou grato a ele eternamente, porque se não fosse ele…ele mudou a vida de muita gente!”

Mattos também volta a falar sobre o sentimento de estar, hoje, no papel de professor. “Eu me sinto muito feliz porque foi algo que eu vivi, né? Alguém me ajudando. E é isso que elas demonstram também, elas ficam ‘puxa, tem alguém olhando por mim, tem esse cara que vem me ajudar, mesmo eu fazendo errado ou às vezes eu não querendo fazer ele vem e me ajuda’. Quando eu consigo fazer isso eu mostro pra mim mesmo que eu aprendi com esse tempo todo de luta de Taekwondo. Eu me sinto muito feliz mesmo e grato por tudo isso. E eu dou uma aula, o olhar das crianças também felizes, isso me deixa muito feliz”, afirma, com um sorriso no rosto.


[Foto: Reprodução/Instagram @kiosanim_wellyngton]


[Foto: Reprodução/Instagram @x_training_unidade2]


Nem só de histórias de superação vive o esporte na periferia, infelizmente. Essas acabam por ser minoria frente a uma infinidade de vidas que se perdem. É o que enfatiza Perez quando perguntado sobre a sensação de ver o crescimento de sua ideia. “Muito engraçada essa pergunta porque tem dois sentidos né. Quando eu comecei eu acreditava muito que o Taekwondo poderia transformar a vida porque aconteceu comigo. Então eu falei: ‘se eu proporcionar isso pra garotada vão surgir outros Claudio Perez. Não foi bem assim…tem um lado muito triste, porque o tráfico é muito forte nessa região, então a tendência é que eles morram cedo, a maioria das crianças morre cedo, tem algumas que se matam por depressão, algumas vão para o tráfico e acabam morrendo, e mesmo assim alguns continuam”.

O mestre fala sobre a parte positiva também, daqueles que obtém sucesso. “De cada 200, a gente forma 10, 15 professores faixa preta. Se não virar faixa preta, metade consegue tocar a vida no caminho certo sem se perder. O Taekwondo ou outro esporte, se bem aconselhado e administrado, consegue salvar bastante vidas e trazer bastante gente para o bem. E esse lado é muito feliz, quando eles prosperam. Então, quando você mexe com o social, você fica abalado de duas maneiras, positivamente pelo que deu certo e negativamente pelo que deu errado. Nunca é só felicidade”, ressalta.

Os dois entrevistados também deixam seus recados para os jovens da periferia que querem começar um esporte:


Mestre Claudio passa uma mensagem a todas as pessoas, desde jovens, até idosos, desde a periferia até os bairros mais nobres. “Todo mundo pode praticar. A gente tem um trabalho na Olga Kos, um instituto que trabalha com pessoas com problemas intelectuais e físicos. Tem gente cadeirante que faz Taekwondo. Então se um cadeirante faz Taekwondo e troca de faixa, quem quiser pode fazer e é bem vindo. Tenho certeza de que perto de você tem uma academia de Taekwondo porque o Taekwondo tá espalhado, gratuitamente e pagando também”, finaliza.


Wellyngton, Claudio e Gustavo (mais um discípulo de Claudio), em 2021.

[Foto: Reprodução/ Instagram @equipeclaudioperez]


Já Wellyngton fala diretamente para o jovem da periferia, passando uma mensagem de motivação e de esperança. “Eu falaria pra ele ter paciência que tudo um dia vai melhorar e pra não fazer besteira, não entrar no tráfico, não mexer com droga, nem cigarro, nem bebida, nem nada. Cada um tem seu tempo, tem que respeitar o tempo das coisas. Você é jovem, menó, não tem que tentar aprender a fazer coisa errada. Tem que tentar aprender a fazer coisa certa, estudar, tentar fazer um esporte, nem que seja futebol ou vôlei, mas nunca entrar na parte obscura da periferia”.

Ele aproveita para criticar a visão que se constrói da periferia. “Todo mundo enxerga a periferia como o mal da sociedade. Mas não é. São pessoas carentes, sem oportunidades, que entram muito fácil nesse mundo por conta da falta de oportunidades, a meu ver. O jovem não tem nenhum acesso!”, clamou.


Por fim, foi realizada uma brincadeira com os entrevistados, em que eles deveriam elencar, dentre as cinco características do Espírito do Taekwondo (Cortesia, Integridade, Perseverança, Autocontrole e Espírito Indomável), presentes na revista do Mestre Claudio Perez, com qual eles se identificam mais e qual eles acreditam poder desenvolver melhor.


O entrevistador não conseguiu escapar dessa, caiu no golpe e aqui estão os resultados:

[Foto: Gustavo Sousa].


VERDE: positivo; VERMELHO: a melhorar

Faça você seu teste também antes de entrar para o mundo do Taekwondo! Kamsahamnida, obrigado!



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