Slam da Guilhermina: poesia e resistĂȘncia
- Guilherme Castro Sousa e OtĂĄvio Daniel
- 22 de jul. de 2022
- 6 min de leitura
Por OtĂĄvio Aguiar e Guilherme Castro Sousa

Naia Curumim apresentando suas poesias no Slam da Guilhermina 259. [Foto: OtĂĄvio Daniel]
A edição 259 do Slam da Guilhermina, onde os competidores batalharam pela penĂșltima vaga na grande final, aconteceu no dia 24 de junho. Os artistas aproveitaram a ocasiĂŁo para divulgar seus trabalhos, vender seus livros e, acima de tudo, se expressar.
Ao sair da estação Guilhermina-Esperança, prĂłxima ao fim da linha vermelha do metrĂŽ no sentido Itaquera, Ă© possĂvel presenciar um evento sendo sediado na praça que leva o mesmo nome da estação. Cada vez mais comum, mas ainda raro de se ver no Brasil, ali se reĂșnem poetas e ouvintes que juntos participam de uma batalha onde todos sĂŁo aceitos e questĂ”es como "quem Ă© o vencedor ou o perdedorâ nĂŁo chegam perto de ser tĂŁo importantes quanto o evento em si.
O Slam da Guilhermina Ă© uma intervenção artĂstica e cultural que surgiu em fevereiro de 2012 e reĂșne artistas perifĂ©ricos de toda SĂŁo Paulo. A produção do evento Ă© realizada por Emerson Alcalde, Uilian ChapĂ©u e Cristina Assunção, professora e uma das slammasters (nome dado aos anfitriĂ”es de eventos de slam) do encontro que, sobre a organização, afirma que âno Slam da Guilhermina nĂŁo hĂĄ dificuldades. Ele jĂĄ tem uma periodicidade, nĂłs jĂĄ temos os nossos livros, nĂłs jĂĄ temos um nome, um nĂșmero de poetas que gostam de competir.â Tais fatores vĂȘm sendo somados ao longo das muitas ediçÔes do campeonato que, tendo sido o segundo circuito de slam poetry do Brasil, reuniu grande reconhecimento e credibilidade no meio cultural perifĂ©rico da cidade e do paĂs. O Coletivo Slam da Guilhermina tambĂ©m Ă© responsĂĄvel desde 2014 pelo Slam Interescolar, campeonato de poesias faladas das escolas do estado de SĂŁo Paulo. Ao todo, sĂŁo cerca de duzentas escolas participando do projeto.
Mas afinal, o que Ă© slam?
O slam poetry â ou poetry slam â Ă© uma expressĂŁo artĂstica que consiste em poesias faladas, acompanhadas de uma performance por parte do poeta. Participando de competiçÔes, cada slammer (nome que se dĂĄ ao artista) dispĂ”e de trĂȘs minutos para realizar sua apresentação, que constitui de trabalhos autorais sem qualquer tipo de acompanhamento musical, adereços, figurinos ou auxĂlio visual. O slam evidencia o uso do corpo e da voz como instrumento artĂstico ao recitar o poema. Em seguida, os competidores sĂŁo julgados por uma comissĂŁo de jurados. Alguns dos critĂ©rios de avaliação sĂŁo a criatividade e interpretação. NĂŁo basta apenas recitar os poemas: eles tĂȘm de colocar a alma neles. O jĂșri Ă© selecionado de forma aleatĂłria entre os espectadores e avalia os artistas com notas de zero a dez.
Sob o clamor âSlam da Guilhermina!â se inicia a competição. A primeira rodada Ă© a mais longa: nela todos os inscritos se apresentam e colocam toda a energia em suas performances. Mais que apenas a palavra: seus gestos, sua voz, sua postura, tudo Ă© entregue a suas poesias. Os temas sĂŁo diversos: polĂtica, racismo, violĂȘncia policial, amor, a relação dos artistas com seus prĂłprios corpos, e cada poeta tem sua prĂłpria maneira de abordar e apresentar tais temas.
Na segunda sequĂȘncia apenas cinco poetas sĂŁo classificados, e na final apenas trĂȘs. O pĂșblico Ă© convidado a ficar mais prĂłximo e nĂŁo assiste Ă competição de forma passiva. Seus gritos pontuam as apresentaçÔes, em comemoração quando um poeta recebe um dez ou dizendo âcredo!â quando nĂŁo. Aproximando-se da fase final, o clima vai ficando mais intenso, o pĂșblico mais animado e os artistas passam a mostrar o melhor de si.
A poesia que antes ocupava a mente e os coraçÔes dos poetas começa a permear toda a praça. No final, um deles Ă© declarado vencedor, porĂ©m o clima de camaradagem entre os participantes permanece. ApĂłs a Ășltima rodada, hĂĄ a interação entre os slammers, a tomada de fotos e a venda de livros dos autores que, entre amigos, conversam e discutem onde deverĂŁo aproveitar o resto da noite.
Todo esse ambiente Ă© Ășnico. Nas palavras de Daniel Jones, slammer de Itapecerica da Serra, mais conhecido como DJohn, âEsse espaço, e todo espaço que Ă© ocupado pelo slam, Ă© necessĂĄrio para o dia a dia, para sobrevivĂȘncia da nossa humanidade, porque Ă© aqui que a gente encontra respiro, desabafo e volta pra casa cheio de amor.â Midria da Silva Pereira, poeta, slammer e estudante de CiĂȘncias Sociais da USP comenta: âĂ nesses espaços onde a gente realmente vive um cenĂĄrio um pouco mais prĂłximo do que seria uma democracia. VocĂȘ nĂŁo precisa falar uma poesia nos moldes do slam, Ă© um espaço onde vocĂȘ pode falar qualquer coisa.â
A poesia tem um papel fundamental na vida dessas pessoas. Por meio dela, conseguem expressar um universo interno e encontrar quem possa escutĂĄ-las. Essa poesia fala de experiĂȘncias que nĂŁo sĂŁo apenas individuais, mas tambĂ©m compartilhadas, transformando o slam numa manifestação dessa coletividade e subjetividade interna dos poetas. DJohn fala que âquem nĂŁo Ă© visto nĂŁo Ă© lembrado. Eu posso abrir portas, atingir algo que nem havia sonhado. Ali eu conheci pessoas que reconhecem o trabalhoâ. Midria afirma que âquando eu escrevo, falo em primeira pessoa, mas estou falando de questĂ”es coletivas de racismo, de machismo, de questĂ”es de classe, direito Ă cidade por aĂ vai. Ă um espaço de auto-escuta e de escutar as outras pessoas e explorar essa subjetividade individual e coletiva.â

A poetisa Midria da Silva Pereira, finalista da edição, apresentando sua Ășltima poesia da noite. [Foto: OtĂĄvio Aguiar]
A edição 259 do Slam da Guilhermina tambĂ©m foi marcada pelo lançamento do livro âA Menina que Nasceu Sem Corâ, que se apresenta tanto como uma coletĂąnea de poesias da autora Midria Pereira quanto uma versĂŁo infantil ilustrada, ambos tratando, cada um Ă sua maneira, de questĂ”es como miscigenação, colorismo, identificação da negritude e empoderamento da poetisa.
AlĂ©m de servir como palco para lançamentos de trabalhos solo, o Slam da Guilhermina conta com uma coleção de oito livros publicados atĂ© o momento, e a nona edição jĂĄ estĂĄ sendo produzida. A publicação dos livros foi possibilitada por um projeto dos membros do Coletivo que, desde 2013, com apoio de editais voltados para projetos de cultura como o VAI (Programa para a Valorização de Iniciativas Culturais) e o Programa de Fomento Ă Cultura da Periferia, tem realizado, de forma independente, curadoria, revisĂŁo, edição, e publicação dos trabalhos dos slammers vencedores de cada etapa do campeonato. As contribuiçÔes dos editais sĂŁo fundamentais nesse processo pois, como coloca Cristina Assunção, âajudam a nos mover.â
No entanto, sendo o slam uma forma de poesia oral, o processo de transcrição deve ser muito minucioso e tratado com esmero. Quando tomados os devidos cuidados para que nĂŁo se altere a mensagem e o conteĂșdo dos trabalhos, Cristina acredita que, mesmo desprovida da energia, do grito, da tensĂŁo e de outras diversas sensaçÔes trazidas pelos poetas nas apresentaçÔes ao vivo, a poesia mantĂ©m o seu potencial de tocar e ativar o leitor. Para ela, a importĂąncia da divulgação e disseminação da cultura do slam Ă© imensurĂĄvel, pois âo slam atinge pessoas que eu nĂŁo atingiria no meu dia a dia, chega em lugares que eu nĂŁo chegaria.â
Sued Lima, professor e membro do projeto Slam Interescolar, comenta: âEu acho que Ă© muito interessante a gente sair do que Ă© estabelecido como literatura e perceber que a literatura marginal tambĂ©m tem valor, principalmente [vinda] de alunos que sĂŁo de lugares perifĂ©ricos, que sĂŁo pretos, que fazem batalha de rima. Eles conseguem perceber que no slam eles tĂȘm voz, sĂŁo julgados e talvez tenham possibilidade de ganhar dinheiro e de progredir.â Cristina completa: âDe ser artistaâ.
Nessa perspectiva, Ă© importante entender que o Slam da Guilhermina nĂŁo se trata apenas de um encontro de artistas, uma batalha de poetas ou um evento cultural em uma praça: o Slam da Guilhermina Ă© tambĂ©m um espaço que concede a pessoas da periferia a possibilidade de expressar sua arte e expor suas ideias para alĂ©m da fisicalidade e temporalidade do ser humano. Projetos como o Slam Interescolar e apresentaçÔes como o Encontro de Slams, que ocorreu durante a Bienal do Livro de 2022, contribuem para com a disseminação dessa forma de arte nas diversas esferas da sociedade e com a maior inclusĂŁo e sensação de pertencimento da população perifĂ©rica, que tem sido abraçada pelo Coletivo desde o seu inĂcio.
Sobre o futuro do Slam da Guilhermina, Cristina espera âque esse campeonato de poesia falada se perpetue, porque Ă© isso o que leva essa poesia e essa fala, nĂŁo sĂł dos decanos, mas que chega tambĂ©m nas escolas para que o jovem se sinta pertencente e protagonista e que possa mudar o mundo. Ă isso que a gente quer: mudar o mundo.â