Os irmãos criadores do Vegano Periférico, Leonardo e Eduardo Santos, constroem a luta pela libertação animal alinhada com as reivindicações populares
Por Maria Fernanda Barros
Leonardo e Eduardo Santos [Imagem: Reprodução/Vegano Periférico]
Leonardo e Eduardo Santos são irmãos gêmeos, nascidos e crescidos na periferia de Campinas. O pai, já falecido, era alcoólatra. A mãe, dependente de empregos ultra precarizados. A infância dos dois é representativa, similar à dos moradores de quase 60% dos lares brasileiros que atualmente enfrentam a fome ou a insegurança alimentar. Todavia, esses irmãos que antes se viam obrigados a implorar por alguns ovos podres e um pacote de miojo no bar da Fátima, o “mesmo bar em que o pai devia o dinheiro da pinga”, hoje falam para os seus 350 mil seguidores no Instagram sobre Veganismo Popular: eles são o Vegano Periférico. E qual é a relação entre a história do Leonardo e do Eduardo com esse movimento político? O que conecta as periferias brasileiras com o veganismo, afinal?
Para muitas pessoas, nada. O senso comum associa imediatamente o veganismo com preços altos e falta de acessibilidade. Como já foi publicado no Central Periférica, a realidade não é exatamente essa — a alimentação vegana pode ser uma opção inclusive mais barata. Mas, os irmãos realizadores do Vegano Periférico mostram que há uma relação ainda mais profunda entre a luta do veganismo popular e as demandas da classe trabalhadora.
Um veganismo pela libertação animal e humana
Ambos relatam terem se aproximado do veganismo por meio de informações acerca da crueldade e exploração de animais. “A motivação foi plenamente ética, eu parei de consumir produtos de origem animal depois que eu tive contato com aquele caminhão que tombou com porcos no Rodoanel. Através disso eu comecei a pesquisar sobre a indústria da carne. Comecei a pesquisar sobre a indústria do leite. Comecei a entender todo esse processo e comecei a questionar”, afirma Eduardo. Seu gêmeo, Leo, se tornou vegano dois anos depois, também pelo mesmo motivo. Ele conta que se adaptou ao veganismo “do dia para a noite”, após assistir o documentário “Terráqueos”. Mas, só mais tarde os dois perceberam que as temáticas referentes ao veganismo possuem profunda relação com a realidade periférica em que estão inseridos.
Na medida em que foram se adentrando no veganismo, os irmãos do Vegano Periférico compreenderam que não se tratava somente de uma causa animal, mas também de uma causa humana. “Na época eu falei: eu não quero contribuir mais com isso. Aí eu ainda descobri que o maior número de trabalhadores resgatados em situações análoga à escravidão era da pecuária”, expressa Eduardo. Além do mais, os dois irmãos já trabalharam como atendentes em uma empresa de fast-food — conhecida pela comercialização de carnes ultra processadas — e ressaltam que, além da insalubridade da comida oferecida, o emprego é extremamente precário e não há nenhum tipo de cuidado com a saúde do trabalhador. Assim, a luta do veganismo popular está conectada com reivindicações populares.
[Reprodução/Instagram/Vegano Periférico]
Fora a situação precária dos funcionários das empresas produtoras e fornecedoras de carne, essa indústria também impacta na qualidade da alimentação da população de baixa renda, constata Eduardo: "Tínhamos uma péssima alimentação: a gente comia basicamente miojo, salsicha, calabresa e arroz. Nunca tive uma diversidade na alimentação e comecei a questionar isso depois que eu me tornei vegano”. Devido aos preços elevados das carnes com maior valor nutricional, a maior parte da periferia só possui acesso aos “restos”, nas palavras de Eduardo. Ele continua, dizendo que “a exploração animal é só a ponta do problema, quando você vê toda a alimentação que nós, da periferia, estamos consumindo, vemos que é o descarte da indústria”.
Uma frente de combate à fome e insegurança alimentar
O veganismo popular, nesse sentido, é um movimento político que vai além dos esforços pela libertação animal. Leonardo ressalta que a luta é muito mais ampla do que parece: “Você vê que o animal está conectado, né? Ele está conectado com outros tipos de exploração, no pasto, na soja, no desmatamento”. Eduardo completa: “O veganismo se conecta absolutamente com todas as outras causas. Não dá para você falar de alimentação vegana, falar de uma dieta vegana sem origem animal sem você levar em consideração a insegurança alimentar e a fome”.
A falta do que comer é um cenário que sempre esteve presente nas periferias brasileiras: são 33 milhões de pessoas atingidas pela fome em 2022, conforme atesta o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar, realizado pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Rede PENSSAN). Como pontuado por Eduardo, o combate a essa realidade é uma pauta do veganismo popular. Isso porque, o que acarreta essa conjuntura é justamente o modus operandi do agronegócio no Brasil – o qual o movimento se empenha em combater.
Os latifúndios, que compõem mais da metade das terras agricultáveis no país, segundo o Censo Agropecuário de 2017, direcionam suas produções — principalmente de ração para alimentar o gado –– para o mercado internacional, visando a garantia de lucros dos acionistas das empresas do agronegócio. Quem fornece alimentos para a população brasileira é, na verdade, a agricultura familiar, organizada em pequenas ou médias propriedades. Porém, por serem menos lucrativas do que a exportação de commodities, recebem a menor parte dos financiamentos e empréstimos de bancos e do Estado brasileiro, o que encarece a produção e consequentemente, os valores dos alimentos. Por exemplo, no Plano Safra de 2006/2007 foram 50 milhões de créditos liberados às monoculturas de exportação e apenas 20% desse valor ao cultivo familiar. Mais uma vez, a luta do veganismo popular se mostra relevante em um país em que a cesta básica custa o valor de um salário mínimo e as pessoas precisam comer ossos para conseguirem se alimentar.
[Imagem: Reprodução/Brasil de Fato]
É preciso politizar a causa
Os irmãos relatam ter dificuldade em popularizar o veganismo, porque “quem está na frente do movimento é o veganismo de mercado”, diz Eduardo. O veganismo de mercado ou veganismo liberal é uma outra vertente do veganismo, oposta ao veganismo popular. Diferentemente da corrente defendida por Leonardo e Eduardo, o veganismo liberal pauta apenas o fim da crueldade animal, sem questionar outras questões, como o racismo e o classismo na produção de carne e outros alimentos de origem animal — é o veganismo do “Kit Kat vegano”, como dito por Leonardo.
Eduardo explica que o veganismo liberal afasta o povo brasileiro da causa, justamente por ser inacessível para a maior parte do país. Leonardo acrescenta: “Cara, é possível fazer um veganismo sem dar a mão para Nestlé”, mostrando que é incoerente se revoltar com a exploração da mão de obra animal mas fechar os olhos para a exploração da mão de obra humana. Porém, a imagem do veganismo é majoritariamente representada pela vertente liberal, pois, como explica Eduardo, "eles têm dinheiro, então, eles têm acesso às publicidades e estão em contato com grandes corporações que também estão dominando o mercado”.
[Imagem: Reprodução/Instagram/Vegano Periférico]
Os irmãos Santos apontam que uma maneira de chamar a periferia para o veganismo popular é por meio da representatividade: “A gente tem que entender como o povo fala e falar para o povo. Só que não dá para falar para o povo se você não vem dessa classe, então a gente precisa de mais representatividade”. Falar sobre veganismo nas redes sociais, com uma linguagem acessível, “sem estrangeirismos e academicismos”, como Eduardo, é a forma que os irmãos criadores do Vegano Periférico constroem sua luta.
Além disso, eles enfatizam que é necessário também parar de culpabilizar os consumidores de carne e outros alimentos de origem animal: “Esse lance de você culpar uma pessoa, falando que ela está errada, é muito comum no veganismo de mercado e em pessoas despolitizadas. Mas o maior problema é a estrutura”. Leo diz que a mudança de hábitos é extremamente necessária, mas “falar que as pessoas são cruéis porque elas comem carne não é bom, porque a estrutura capitalista que a gente vive não estimula nosso pensar crítico politicamente. É por isso que a pessoa come carne, porque estamos dentro de uma estrutura que vai ditar nosso modo de consumo. Temos que pautar mudanças individuais alinhadas com mudanças estruturais e políticas”.
Vegano Periférico via Twitter
[Imagem: Reprodução/Vegano Periférico]
Não importa onde você mora, importa como você pensa
A frase “Não importa onde você mora, importa como você pensa” está presente na biografia do Instagram e no website da dupla. Eles explicam que essa sentença se relacionam com o direito dos indivíduos periféricos existirem e pensarem: “Nós nunca nos sentimos gente quando a gente está nos lugares, quando você está pegando um ônibus, quando você é um funcionário do McDonald 's ou de qualquer subemprego, você não se sente gente. Por conta da nossa origem, existe essa incapacidade de sentir-se na sociedade, e faz com que a gente também não sinta motivação para pensar”, manifesta Eduardo.
[Imagem/Reprodução/Vegano Periférico]
Participar das discussões políticas referentes ao veganismo é, portanto, uma forma de resistência. “A gente é automaticamente reprimido e oprimido só por se sentir periférico. Essa frase vem muito do nosso processo de mudança”, diz Eduardo. Leonardo acrescenta: “A gente começou a olhar as coisas de forma muito diferente, só que a gente não mudou o nosso CEP. A gente só mudou a nossa mente. Só que essa mudança de mentalidade foi tão profunda que a gente começou a falar ‘mano, então quer dizer que as pessoas aqui na perifa, que convivem com a gente, que jogam bola com a gente aqui, elas também podem pensar, não é só a rapaziada que está na classe média’”.
Os irmãos reforçam que, para construir a luta do veganismo popular, a consciência de classe e a movimentação política são elementos essenciais. Por isso, a motivação em reivindicar um veganismo acessível para as múltiplas realidades brasileiras, por meio do Vegano Periférico: “É a famosa consciência de classe do Marx: a única forma da gente mudar qualquer coisa é tendo consciência. E essa consciência não vai vir quando o mundo já estiver maravilhoso. Ela vem com a luta, ela vem com a troca de ideia. Ela vem quando as pessoas estão na dificuldade. Então não importa o CEP, importa como a gente pensa”.
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