Os detalhes sobre a privatização do Pacaembu, os sigilos e polêmicas no contrato de concessão e a obra que mudará a configuração original do estádio
Por Gabriel Eid
Estádio do Pacaembu (foto: Gabriel Eid/ Central Periférica)
Nos últimas semanas, as ações da Allegra Pacaembu, empresa que recebeu da prefeitura a permissão para explorar o complexo esportivo do Pacaembu, se tornaram objeto de debates e controvérsias na Câmara Municipal de São Paulo. Uma audiência, promovida conjuntamente pela Comissão de Educação, Cultura e Esportes e a Comissão de Política Urbana Metropolitana e Meio Ambiente, foi realizada no dia 27 de maio para questionar se a concessão em questão estaria ferindo um patrimônio histórico e cultural da cidade. Também foi discutida a oferta da prefeitura de conceder a Praça Charles Miller para a empresa.
O debate envolveu representantes dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, da sociedade civil, do Condephaat (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico) e da concessionária responsável pelo estádio. Na audiência, a empresa defendeu as intervenções no complexo esportivo, afirmando que algumas de suas estruturas já estavam comprometidas e que o objetivo era atrair mais pessoas e valorizar o local. Já os representantes da população que foram assistir o evento criticaram essa tese: Mariana Ferraz, uma frequentadora do Pacaembu, questionou se a gratuidade dos serviços oferecidos iria mesmo continuar. O que ficou prometido foi um agendamento de uma visita da Comissão de Esportes às obras em questão, proposto pelo vereador Daniel Annenberg (PSDB) e um prazo de inauguração dado até 2024.
A privatização do Complexo Esportivo do Pacaembu, que engloba não só o estádio, símbolo da cultura popular futebolística, como também um clube gratuito com piscina, ginásio poliesportivo e pista de atletismo, foi iniciada com a entrada de João Dória na prefeitura em 2017. Após uma série de manifestações contrárias à entrega do maior patrimônio esportivo do município, incluindo coletivos de torcedores e associações de moradores da região, o contrato foi firmado no fim de 2019, já na gestão de Bruno Covas.
O consórcio que ganhou a licitação, a Allegra Pacaembu, pertence a um fundo de investimentos. O seu representante no consórcio, Rafael Carneiro Bastos Carvalho é sobrinho do presidente da Federação Paulista de Futebol (FPF) e casado com uma sobrinha do ex-prefeito Gilberto Kassab. Parentes ligados à Kassab, que foi nomeado secretário de Dória na época da venda do estádio, são sócios de acionistas ligados ao grupo em diversos empreendimentos, que vão desde serviços de engenharia à corretagem de planos de saúde. Nos meses anteriores à assinatura do contrato foram realizadas diversas fusões e trocas de comandos na empresa, alguns sem emitir notas fiscais, como revelou pesquisa feita pelo jornalista Demétrio Vecchioli do UOL. Uma das empresas ligadas à Carneiro Bastos, inclusive, ampliou o seu capital de 1,2 milhões de reais para 600 milhões, em apenas onze dias.
Cerimônia que oficializou a privatização do Pacaembu em 2019. No centro, segurando a placa, está Eduardo Barella, CEO da Allegra Pacaembu. Ao seu lado direito está o então prefeito Bruno Covas. O sócio de Barella no empreendimento, Rafael Carneiro Bastos não compareceu, mas seu tio, Reinaldo Carneiro Bastos, que também é presidente da Federação Paulista de Futebol, estava presente na extrema direita da foto (imagem: divulgação/ prefeitura de SP)
Após a oficialização da concessão, a Allegra apresentou projeto para reformar o estádio, o que incluía a demolição do tobogã, sua área mais barata e mais popular para a construção de um prédio de um centro comercial e corporativo. Os planos, no entanto, foram atrasados pela pandemia da Covid 19, que fez com que um hospital de campanha fosse aberto no campo. O consórcio, inclusive, aproveitou a oportunidade para lucrar com a abertura de hospitais de campanha contra a doença. A Progen, empresa acionista do grupo, recebeu 46 milhões de dinheiro público da prefeitura por ceder o espaço. Outros negócios, então, passaram a ser feitos entre o Estado e a empresa, que investiu não só no Pacaembu mas em outros hospitais de campanha.
Projeto divulgado pela concessionária do centro corporativo que ficaria no lugar do Tobogã
Mesmo diante desses ganhos o consórcio, já em 2022, alegou prejuízo por conta da pandemia, declarando que “a Progen e a Allegra são empresas diferentes” mesmo pertencendo ao mesmo fundo de investimentos. Diante disso, ela pediu um ressarcimento para a prefeitura, que ofereceu, por sua vez, a exploração da Praça Charles Muller em troca e o aumento do prazo de validade do contrato. A proposta, na ocasião, provocou mais receios do cerceamento e controle de mais um espaço público, utilizado para atos políticos, culturais, de lazer e de comércio popular (como ambulantes e feirantes).
Placa da obra no Pacaembu colocando a Progen como empresa responsável, o que contraria a nota da empresa (foto: Gabriel Eid/ Central Periférica)
No dia 23 de maio voltou a ser noticiada a imposição por parte da prefeitura, sob a gestão de Ricardo Nunes (MDB), de um sigilo nos documentos da concessão. Em abril eles já haviam sido retirados do portal de transparência Sistema Eletrônico de Informações (SEI), na mesma época em que o Olhar Olímpico do UOL divulgou a intenção da Secretaria de Desestatização de entregar a Praça Charles Miller. Enquanto isso permanecem as incógnitas sobre o destino do Pacaembu e dos seus milhares de frequentadores. O Central Periférica esteve no estádio e conversou com seguranças na portaria do complexo esportivo. Eles não permitiram a nossa entrada porque, segundo eles, enquanto a obra continuar tudo estará fechado.
Antes desse fechamento, esportistas ou qualquer um que quisesse realizar atividades físicas conseguiam usar os espaços gratuitamente, incluindo pista de atletismo, piscina e quadra poliesportiva. Hoje, diante da indefinição da concessão, não se sabe se esse direito continuará.
Estado das obras no Pacaembu, no local onde anteriormente era o Tobogã, setor mais barato do estádio. Domingo, 29 de maio. (foto: Gabriel Eid / Central Periférica)
Um sintoma da chamada elitização do futebol
Já faz dez anos quando o Brasil estava a todo vapor nos preparativos para a Copa do Mundo de 2014, com arenas novíssimas sendo construídas e outros antigos estádios sendo completamente remodelados. Falava-se muito em atender ao famoso “padrão FIFA”, em que se propunha um novo jeito de torcer, mais “organizado”, sem bandeiras, sinalizadores ou torcedores de pé. Talvez algo parecido com o modo europeu de se torcer.
As modernas arenas construídas também ofereciam novos serviços, com bares, restaurantes, lojas e às vezes até centros de convenções multiuso. À época, o antropólogo Antônio Oswaldo Cruz, da Universidade Federal do Rio de janeiro (UFRJ), chegou a dizer que o “estádio estava se transformando em um lugar mais de consumo para um torcedor mais endinheirado”. e para ele, esse processo já vinha começando desde antes, quando ocorreu a primeira reforma no Maracanã para o Mundial de Clubes de 2000, com a diminuição de sua capacidade e a instalação de cadeiras no anel superior.
Ao mesmo tempo que o futebol se tornava um espaço mais elitizado e restrito, lucrava-se mais com a venda de ingressos. É o que revelou um estudo realizado naquela época pelo geógrafo Christopher Gaffney da Universidade Federal Fluminense (UFF) e divulgado em matéria da Agência Pública. De acordo com o levantamento, a média de público no Campeonato Brasileiro passou de 17 461 pessoas por jogo em 2007 para 12 970 pessoas em 2012. No entanto, isso não significou queda do faturamento, visto que nesse mesmo período a arrecadação subiu de 80 milhões para 119 milhões. Já o valor médio pago em um clássico do campeonato brasileiro no Maracanã subiu de 23 para 45 reais entre 2010 e 2013, com a reforma.
Outra pesquisa, desta vez feita por Erick Omena, doutorando da Oxford Brookes University, calculou o impacto do ingresso dos jogos na renda do trabalhador. Segundo ela, em 1950 o ingresso mais barato no Maracanã representava 2% do salário mínimo vigente naquela época. Já em 2010 essa porcentagem saltou para 6% e em 2013 dobrou para 12% do salário mínimo. Se contarmos que há dez anos atrás, época da preparação para a Copa, o país vivia um momento de euforia econômica com expansão do rendimento médio do trabalhador, esses números podem se tornar mais alarmantes hoje, após uma crise econômica e onda de desemprego que corroeu o poder de compra da população.
Gráfico (reprodução/Globo Esporte)
De acordo com apuração do Central Periférica, o preço médio do ingresso dos jogos do Corinthians em 2021, após o retorno do público na pandemia, era de 50 reais. O Palmeiras, clube com um dos ingressos mais caros no Brasil hoje, apresentou média de 58 reais para ver os jogos. Já a média de público voltou a aumentar nos anos seguintes à reportagem da Agência Pública em 2013, chegando até a sua melhor marca em 2019 com 21 230 pagantes. Isto talvez confirma a tese de Pedro Daniel, da consultoria BDO, que na época da inauguração das novas arenas afirmou que o novo produto e atrativo envolvendo o futebol brasileiro com estádios novos e craques internacionais poderia chamar mais atenção e atrair mais torcedores. No entanto, não há dúvidas de que houve uma elitização e que o público que ia aos estádios no passado não é o mesmo de hoje. Isso porque o ingresso mais barato no Maracanã hoje, por exemplo, gira em torno de 60 reais, o que nem chega perto dos 20 reais cobrados no mesmo estádio antigo. Isto, mesmo corrigindo a inflação e ainda mais em um contexto de crise severa, é autoexplicativo.
E não é a primeira vez que um episódio de privatização como o que ocorreu no Pacaembu causa reações contrárias e polêmicas. Em 2012, o Maracanã, antes mesmo do fim das obras de modernização, foi concedido para o setor privado pelo então governo de Sérgio Cabral. Uma audiência pública ocorrida em novembro de 2012 para discutir a questão foi tomada por protestos de movimentos sociais que eram contra a demolição da Escola Municipal Friedenreich, do parque aquático Julio Delamare, do estádio de Atletismo Celso de Barros e do Museu do Índio.
O estádio do Maracanã, símbolo histórico do futebol brasileiro, também já teve um setor popular, a chamada Geral, onde milhares de torcedores dos setores mais pobres da classe trabalhadora se amontoavam para assistir aos jogos. Assim como o Tobogã, hoje demolido, ela também foi extinta em uma das obras de modernização das últimas décadas.
Antiga Geral do Maracanã tomada por torcedores (reprodução/TNT Sports)
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