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Camilla Almeida e Maria Fernanda Barros

Desigualdade racial e social na legislação do aborto

Atualizado: 17 de jul. de 2022

Legalização é necessária para a garantia da saúde pública e dos direitos reprodutivos nas periferias, constata a pesquisadora Emanuelle Goes


Por Camilla Almeida e Maria Fernanda Barros

[Imagem: Reprodução/Carta Capital]

Reivindicar o aborto legal e seguro é uma pauta de saúde pública — no Brasil, a criminalização mata uma mulher a cada dois dias. São um milhão de abortos induzidos por ano no país, que hospitalizam cerca de 250 mil mulheres, segundo dados coletados em 2018 pelo Ministério da Saúde. Trata-se de uma conjuntura agressiva para aqueles que podem gestar, na qual a maternidade é imposta e os direitos reprodutivos são negados. Ainda nesse contexto, há também um fator agravante que se deve apontar: a desigualdade racial e social. A luta pela legalização é ainda mais necessária quando se considera a realidade de mulheres negras e periféricas.


O número de abortos é o dobro na população negra: conforme constata o IBGE, o indíce é 3,5% em mulheres pretas e 1,7% em brancas. Quanto aos óbitos, o DataSUS atestou que, nos últimos dez anos, a cada 10 mulheres mortas por aborto clandestino, 6 são pretas ou pardas. Emanuelle Goes, doutora em Saúde Pública pela UFBA (Universidade Federal da Bahia) e autora da tese “Racismo, aborto e atenção à saúde: uma perspectiva interseccional”, em entrevista ao Central Periférica, comenta esse fenômeno: "Em geral, são mulheres negras, pobres e de periferia que realizam o aborto inseguro. E o aborto inseguro tem como consequência a morte materna".


[Imagem: Reprodução/Outras Palavras]


Devido à falta de recursos financeiros, esse grupo recorre a métodos arriscados e precários para interromper a gravidez. A cientista também ressalta que os corpos negros e periféricos possuem acesso desprivilegiado às instituições de saúde, o que acarreta mortes maternas dentro dos hospitais. Esse cenário pode ser entendido como algo proposital — um prolongamento da necropolítica, que já ocorre durante as operações policiais nas periferias, causadoras de assassinatos em massa da população negra e favelada. "O aborto como crime e a não preocupação de tornar ele inclusivo e com acesso legal e permitido no país no país tem relação com o grupo que morre. O grupo que morre são pessoas que a sociedade não se importa, são pessoas que o Estado tem matado por outros motivos", expressa Emanuelle.


Legalizar o aborto é, nesse sentido, preservar a saúde de corpos de raça discriminada e condição social desfavorecida. Emanuelle explica que tornar o aborto legal certamente diminuirá a mortalidade materna, principalmente de pessoas pretas e pobres, a partir de ações efetivas de saúde pública: "Legalizar o aborto não significa que as pessoas podem fazer de qualquer jeito. Quando legaliza, também se cria mecanismos, equipamentos e instrumentos para que as pessoas possam realizar o aborto com segurança. Então isso vai impactar na redução da morte materna, por conta de uma política que pode ser regulamentada e garantida pela legalização".


[Imagem: Reprodução/Esquerda Diário]


A redução das taxas de mortalidade entre gestantes não é o único impacto positivo que seria gerado pela legalização do procedimento. A pesquisadora esclarece que tal deliberação colocaria os direitos reprodutivos de pessoas com útero no cerne do debate público, fomentando a articulação de políticas públicas de planejamento familiar e educação sexual. Essas medidas são essenciais para garantir autonomia e liberdade individual de cada cidadão para com seu corpo, já que promovem debates saudáveis sobre sexualidade e formação familiar.


Ademais, não existem métodos contraceptivos totalmente eficazes, e ainda sim a legislação atual trata o aborto como crime: com pena de um a cinco anos, exceto em casos de violência sexual, feto ancéfalo e risco de vida à gestante. O Estado brasileiro não reconhece a realidade dos próprios cidadãos, em que políticas públicas de educação sexual abrangentes no país são escassas ou inexistentes — o que impede a efetivação dos direitos reprodutivos das pessoas com útero. Elas morrem ou adoecem por não optarem pela vida maternal.


Mas, legalizar não implicaria necessariamente em uma lei abrangente que proteja de forma integral os direitos reprodutivos da população periférica. Desigualdades prévias e outras questões estruturais, como o racismo, impactam na acessibilidade da comunidade negra e periférica aos serviços de saúde, explica Emanuelle. Dentro desse cenário de aparelhos institucionais que perpetuam desigualdades, a cientista destaca que “se você tem uma um serviço de aborto legal ou aborto legalizado no país, nós também precisariamos rever essas estruturas desiguais, para que todas as pessoas possam usufruir desse direito”.


O ideal seria que o acesso ao aborto legal e seguro fosse universal, segundo a pesquisadora:: “A legalização precisa ser da mesma maneira que a gente pensa o Sistema Único de Saúde”. Além disso, a legalização funcionaria como um passo na direção da garantia dos direitos reprodutivos, se acompanhada de políticas públicas que endossam a importância da educação sexual e do planejamento familiar. Segundo Emanuelle, é preciso “educação sexual para prevenir, métodos contraceptivos para escolher e o aborto para não morrer”.





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