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Fernando Américo Cardoso

As bases da aceitação da vacina no Brasil

Investimentos em conscientização e inclusão social explicam a alta confiança do brasileiro no imunizante contra a Covid-19


Por Fernando Américo Cardoso

[Divulgação: Secretaria Municipal da Saúde de São Paulo]

A pandemia da Covid-19 apresentou às nações do planeta um desafio de saúde pública com poucos precedentes na história: como vacinar populações inteiras de forma eficiente e em um período curto de tempo. A situação inédita colocou em xeque diversas crenças e estratégias das campanhas de vacinação ao redor do globo. Com o passar dos meses, ficou mais claro quais fatores determinam o sucesso da imunização pelo mundo.


A compra de imunizantes com antecedência e a existência de uma estrutura interna para a sua distribuição foram fatores fundamentais para o triunfo de muitos países. No entanto, um terceiro aspecto inesperado se mostrou ainda mais importante para o resultado da missão. A confiança da população na vacina foi o motivo pela qual nações melhores preparadas para a vacinação encontraram dificuldades em imunizar a todos.


Nos Estados Unidos, onde as vacinas foram adquiridas ainda em fase de teste e há uma ampla rede de distribuição de medicamentos e imunizantes, a vacinação avança a taxas cada vez menores desde o início de abril. De acordo com o Centers for Disease Control and Prevention (CDC), menos de 60% dos americanos estão completamente imunizados, enquanto países menos desenvolvidos e com o início da imunização tardio já ultrapassaram a marca estadunidense. A justificativa para este recente enfraquecimento se encontra em pesquisa realizada em dezembro, pela Pew Research Center, em que quase 40% dos residentes dos EUA declararam que não pretendem tomar a vacina.


Imunização no Brasil


O caso brasileiro é igualmente peculiar. O governo do presidente Jair Bolsonaro demorou para adquirir vacinas para todos os brasileiros, o que fez com que a vacinação se iniciasse tardiamente. O próprio chefe de Estado se mostrou receoso em relação ao imunizante e ajudou a espalhar desinformação. Em live realizada no dia 21 de outubro, Bolsonaro sugeriu uma possível conexão entre a vacina e o desenvolvimento do vírus da Aids.


Apesar desses obstáculos, a imunização já atinge cerca de 60% da população brasileira. A explicação para este sucesso tardio se encontra na confiança que o brasileiro possui na vacinação. Em julho, uma pesquisa do Datafolha apontou que 94% dos entrevistados já haviam se vacinado ou pretendiam se vacinar, um número muito superior ao encontrado nos EUA.


No país conhecido por eventos históricos como a Revolta da Vacina, em que a população marginalizada se rebelou contra uma campanha de vacinação obrigatória governamental, a convicção do brasileiro na vacina da Covid-19 é surpreendente e superior aos números dos países desenvolvidos. Para Jair Ferreira, professor de epidemiologia da UFRGS, basta analisar os acontecimentos na saúde pública brasileira nos últimos cem anos para concluir que tal resultado não é uma surpresa.


“Isso vem desde os tempos do Oswaldo Cruz no início do século XX, com suas campanhas contra a febre amarela e a varíola no Rio de Janeiro. Graças às campanhas realizadas muitas doenças foram erradicadas. Foi o caso da varíola entre 1966 e 1971 e da poliomielite entre 1983 e 1989. Outras doenças foram drasticamente reduzidas, como o sarampo, o tétano, a difteria e a febre amarela. A população percebe esses sucessos e percebe também que as intercorrências indesejáveis causadas pelas vacinas são muito raras”, afirma Ferreira.


Cultura da vacina


Em 1973, o governo brasileiro criou o Programa Nacional de Imunizações (PNI). Com o intuito de erradicar doenças como varíola, poliomielite e sarampo, o programa foi fundamental em tornar as campanhas de vacinação em ferramentas permanentes da saúde pública do país, e não apenas fenômenos de caráter provisório. Ao alcançar prestígio internacional, o PNI concebeu uma estrutura efetiva e didática para inserir a população, principalmente as famílias de baixa renda para quem falta saneamento básico e outros elementos sanitários, em uma rotina de imunização, tornando as vacinas um elemento básico da saúde dos brasileiros desde o nascimento.


Fernando César, ex-gerente de vendas da multinacional Sanofi, responsável por vendas de vacinas de diversas doenças para o governo brasileiro, afirma: “a utilização de vacinas para os brasileiros não é uma novidade, mas algo que já faz parte de nossa "educação profilática”. Os brasileiros possuem um "Calendário Vacinal" bastante robusto, onde as mães são aculturadas a aplicarem vacinas em seus filhos desde os primeiros dias de vida.”


Quinze anos depois, a recém-criada Constituição Federal de 1988 criou o Sistema Único de Saúde (SUS), o maior programa de cobertura universal de saúde do planeta. A criação ampliou de forma significativa o acesso à saúde entre os mais pobres, aqueles que não possuíam renda para participar do sistema privado. A cada vez maior inserção do Estado na área, aliada a inclusão dos marginalizados no sistema de saúde, possibilitou o surgimento de uma relação de confiança entre a população e o auxílio governamental.


Importância da saúde pública


Atualmente, dados do IBGE apontam que mais de 70% da população brasileira depende do SUS, seja para procedimentos ambulatoriais, consultas médicas ou, até mesmo, vacinas. O programa é responsável por 98% do mercado brasileiro de imunizantes. Desde o nascimento, o brasileiro, seja a qual classe social pertence, conta com o Estado para se imunizar contra diversas doenças. A Covid-19 é apenas mais uma delas.


Além do vínculo duradouro criado com o povo brasileiro pelo sistema público de saúde do país, crises sanitárias recentes também fortaleceram a credibilidade do Estado como o principal fornecedor de vacina do país. Em 2009, quando o vírus da H1N1 também causou uma “pandemia”, de acordo com a nomenclatura da Organização Mundial da Saúde (OMS), o mundo inteiro precisou se organizar para uma vacinação em massa e rápida. No Brasil, foram 88 milhões de vacinados em apenas 3 meses. O sucesso do governo liderado por Luiz Inácio Lula da Silva à época criou um outro pilar para a disposição e segurança do brasileiro em relação a campanhas massivas de vacinação.


Outras doenças que se espalharam pelo país também auxiliaram na conscientização da população em relação aos imunizantes. Entre 2016 e 2017, um surto de febre amarela em território brasileiro provocou uma grande mobilização governamental em prol da vacinação contra o vírus. Novamente, as vacinas se provaram como a solução para a contenção da doença. Municípios e comunidades com altas taxas de imunização controlaram de forma mais dinâmica o vírus.


Sobre o histórico brasileiro com doenças e surtos, Fernando César afirma: “Tradicionalmente os brasileiros se acostumaram com doenças do Terceiro Mundo como malária, dengue, chikungunya, e outros tipos de endemias. Além disso, o governo brasileiro anualmente faz uma forte campanha de vacina para a gripe, que ajuda a conscientizar a importância da vacinação, especialmente para a população mais idosa.”

O Brasil continua a ser criticado mundo afora pela forma como combateu a pandemia. Até então, são mais de 600 mil mortes, a segunda maior marca em todo o planeta. A incompetência e a indisposição do governo de Jair Bolsonaro foram determinantes para o desempenho catastrófico. No entanto, suas ações não foram capazes de destruir completamente as bases criadas pelo desenvolvimento da saúde pública no país ao longo dos últimos quarenta anos.


Mesmo diante da falta de vacinas e do início da vacinação tardio, os brasileiros, diferente dos residentes de outros países até mais desenvolvidos, mostraram uma confiança inabalada na imunização e no papel fundamental do Estado no cuidado com a população. Provaram que investimento em conscientização e inclusão social trazem resultados positivos, mesmo dentro de um cenário indesejado e nada acolhedor.



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