O autor e ativista social conversou com o Central Periférica e destacou a importância da favela mudar a narrativa de ser um local carente
Por Gabriel Tavares
A ExpoFavela 2022 foi apenas a primeira de muitas feiras de empoderamento dos empreendedores periféricos. É assim que o seu idealizador, Celso Athayde, pensa em relação ao movimento, iniciado com o evento que ele organizou neste ano durante três dias no WTC Events Center. O empreendedor social é também CEO da Favela Holding, um conjunto de empresas compostas por empreendedores comunitários para fazer girar a renda nas favelas, e fundador da Central Única das Favelas (CUFA), organização social com ampla atuação no auxílio aos moradores de regiões periféricas.
Em 23 de maio, Celso recebeu o prêmio de Empreendedor Social do Ano pelo Fórum Econômico Mundial (FEM), em Davos, na Suíça. Ele foi indicado ao prêmio em 2021 por sua atuação como empreendedor social. Durante a pandemia, a CUFA realizou projetos de amparo como o Mães da Favela. Segundo o jornal Folha de São Paulo, a iniciativa foi responsável por amenizar as consequências sociais e econômicas da crise sanitária de COVID-19 em 5 mil comunidades no Brasil.
Durante o evento, ele também anunciou a criação do Fórum Econômico das Favelas Brasileiras e o Quarto Setor. Na matéria publicada no portal Notícia Preta, você pode conhecer mais sobre estas iniciativas.
Celso Athayde discusa na abertura da ExpoFavela 2022 em 15/04/2022. Reprodução / Gabriel Tavares
Em entrevista exclusiva ao Central Periférica, Athayde destacou a necessidade de parceria entre o mercado financeiro, simbolizado pelos investidores, e a favela, representada pelos empreendedores presentes na feira. Leia a seguir a entrevista completa.
Qual mudança você espera não apenas na periferia, mas também na visão do mercado e dos investidores em relação à favela após os três dias de evento?
Na verdade, o que precisa mudar é percepção dos dois lados. Aqui é um start, a feira não vai mudar a vida de ninguém. Começa um processo de mudança. Eu acho que, normalmente, todo tema de imprensa, quando se fala de favela, se fala ou de ajuda, ou de violência. Ou só de uma situação convencional, social, de ajuda: “como a gente pode ajudar essas pessoas carentes?” ou é violência. Então, a gente nunca fala do ponto de vista econômico, como se a favela não fizesse parte do debate econômico, como se ela não fosse importante no debate econômico. Então, o que eu acho que muda é isso, a gente pautar a imprensa, a sociedade, sobre o que essas pessoas estão fazendo. Quer uma prova de que as pessoas não sabem o que elas [as pessoas da favela] estão fazendo? É que isso vira uma grande pauta, uma grande notícia, uma grande novidade. Você saber que tem pessoas na favela que fazem trança, fazem serviços, que são startups, pouca gente sabe disso. Quando a gente consegue colocar 20 mil empresas inscritas no primeiro ano [da ExpoFavela], isso é relevante. [Foram] 300 fundos de investimentos inscritos para vir aqui. Nem eu sabia que tinham tantos fundos de investimentos. As pessoas nem sabem o que é isso. Então, é importante você dizer para a favela o que é um pitch, como isso funciona, o que é uma startup, o que é um investidor-anjo. Então, são esses códigos que precisam ser mais democratizados. Na medida que as pessoas percebem isso, elas começam a mudar, e você começa a aumentar a régua. Para mim, esse evento aqui é um movimento. Posso dar como exemplo o Guga [Gustavo Kuerten, ex-tenista] vencendo o Rolland Garros. Era uma coisa inesperada, de repente um cara ganha [no torneio] de Rolland Garros e o Brasil passa a jogar tênis. Então, acho que o que precisamos fazer é isso, mudar essa ideia de que se tem sobre esses empreendedores [da favela] e, sobretudo, mudar a ideia que esses empreendedores têm sobre eles e sobre o território deles. Acho que essa é a grande mudança.
É uma coisa tão nova na visão da grande mídia que virou um espetáculo, como você disse. Então, qual é a cobertura que você espera que a grande mídia tenha da favela daqui para frente? O que precisa mudar para sair da visão apenas de ajuda ou de violência?
A favela se posicionar. Se a favela se coloca como carente, aceita a ideia de que é um lugar de carência, quando você aceita que você diga que aquela pessoa mora numa comunidade carente, ela está aceitando que é carente e que seus filhos são carentes, que seus maridos e esposas são pessoas carentes. E aí, obviamente, a narrativa é sempre de ajuda. Ter baixa renda é uma coisa, ser carente é outra. A evolução dessa narrativa é que vai fazer você ser percebido de uma forma diferente, o resto é automático e natural. Quando você vai em uma favela, é natural que alguém diga: “meu filho está fazendo uma escolinha para ele não ficar perto do tráfico”. Na verdade, o que menos tem na favela é tráfico. São poucas pessoas que fazem parte do tráfico. A questão é que são pessoas armadas. Mas, na prática, o que tem de gente na favela que não tem nenhuma relação com o tráfico é um absurdo. Então, não ser jogador de futebol, ou não fazer isso, ou não fazer aquilo, não é automaticamente fazer parte do tráfico. São essas narrativas óbvias que estão na cabeça das pessoas que precisam ser mudadas. Houve uma época que você [morador da favela] só era jogador de futebol ou pagodeiro. É preciso você pensar em outras possibilidades. Na prática, qualquer coisa que você faça, seja movimento social, atividades sociais, você precisa de dinheiro. E esse dinheiro pode vir tanto de um político que vai te oprimir, vai te patentear, como pode vir do desdobramento das ações comerciais que você precisa fazer. E todo mundo na favela empreende por necessidade. Não tem nada de novidade nisso. O cara empreende porque ele tem baixa renda e não dá para pagar as contas. Ele não consegue pôr o filho na faculdade, comprar uma moto porque a renda é baixa. Então ele precisa empreender. Só que ele não fala “eu empreendo”, ele fala “eu me viro”. Parece que aquilo não tem valor. A minha mãe, por exemplo, era mãe praieira. Ela pegava as crianças, levava para praia e as mães pagavam [para] ela uma merreca. Depois que eu cresci, percebi que ela vendia reputação e credibilidade. A mesma reputação que você coloca seu filho em um carro de aplicativo, se ele tiver reputação. É a mesma lógica. Você entra no carro de um desconhecido e as mães deixavam um monte de criança com uma mulher na praia. Era arriscado. E depois eu cresci e percebi [que] isso era um negócio. Ela nunca entendeu isso como um negócio, mas certamente, se alguém do asfalto, com esse fundo de investimento fosse lá, eles pegavam aquela ideia, usava seu network, colocava de pé e ela iria ser uma funcionária de algo que ela tinha inventado, porque ela não saberia nem como patentear aquilo. Então, a evolução de como você consegue ter relação com o mercado é que precisa mudar, e eu acho que essa feira é isso: você ter pretos, brancos, ricos, donos de fundos e pessoas simples como aquelas que são as grandes atrações da noite, mas que são pessoas muito humildes e economicamente simples. Agora elas começam a ascender e começam a puxar as outras, começam a passar a dar muita mídia para elas. Isso vai ganhando escala na medida em que outras pessoas passam a perceber que podem também ter sucesso. Os empresários de outros estados e municípios começam a buscar também oportunidade de negócio em seus próprios ambientes. Vai acontecer a criação de um novo mercado, um grande mercado, e a descoberta de um mercado que já existe.
Você começou falando que a favela precisa se posicionar. E o que você espera que mude na visão do investidor? O que ele pode fazer de diferente?
Essa revolução não vai partir do opressor, mas dos oprimidos. Então, a revolução precisa partir daqueles que sofrem as consequências das diferenças sociais. A posição precisa partir de quem precisa fazer a mudança, que é da favela. O resto é consequência. Investidor investe naquilo que dá resultado. É uma questão de ele perceber que aquilo dá resultado. Só que já dá resultado. Tanto que eles investem nas empresas que têm negócios em favelas. As grandes marcas, por exemplo, fazem produtos personalizados para esse público. Quando você vai numa empresa de telefonia, eles têm produtos para esse público. Quando você vai em um banco, eles têm produtos para esse público. Não é novidade nenhuma que já existe uma relação. Agora, se a favela souber que ela mobiliza a quantidade de recursos que mobiliza, é ela que precisa mudar a relação, ela que precisa se organizar, ela que precisa dar um outro norte. Da mesma maneira que, se o asfalto quiser fazer um tipo de relação com ela na condição de eles serem os navios piratas, em que vão para a favela apenas para poder tomar o tesouro, a responsabilidade é da favela, porque ela que tem que ser a mediadora, o ponto de equilíbrio dessa relação. Ela pode vender a favela para o asfalto, ou ela pode, na verdade, ter um relacionamento econômico com o asfalto e exigir as contrapartidas e o respeito que eles [os investidores] têm que ter naquele território. Se o homem do asfalto não quiser ter respeito, ou não souber como ter esse respeito, é o jogo deles. A favela sabe. E se ela sabe, ela precisa se organizar pra falar a linguagem do asfalto e ela passa a ser um grande laboratório de novas possibilidades, novas percepções e de avanço econômico
Qual o exemplo você quer deixar para quem vier depois da sua geração e que vai se inspirar em você?
O exemplo que eu quero deixar é o exemplo prático e não o discurso. O exemplo que eu quero deixar não são os livros que eu escrevi, mas são as marcas efetivas que eu deixei. O exemplo que eu quero deixar não é de militância, mas de atos. Eu não sou um cara de pau, eu não sou um cara de discurso. Quero que as pessoas percebam tudo que eu fiz e aquelas pessoas que se identificarem com o que eu fiz, que façam. O meu projeto não é individual, ele é coletivo: a democratização, em escala, de possibilidades e de oportunidades que elas têm que ter na prática para se desenvolverem. Por isso, [é preciso] fazer escola de negócios na favela, sem cobrar por isso. O exemplo, o legado é esse: não discursar, mas fazer.
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