O censo faz parte de um projeto iniciado em 2018 no Instituto de Estudos Avançados (IEA) da Universidade de São Paulo. Livro sobre a experiência pode ser baixado gratuitamente.
Por Marília Monitchele
Em março de 2018 a professora Eliana Souza Silva, diretora da Redes da Maré, organização não governamental que visa a garantia de direitos dos moradores do Complexo da Maré, assumiu a Cátedra Olavo Setúbal de Arte, Cultura e Ciências do IEA. A pesquisadora lançou o projeto intitulado Democracia, Artes e Saberes Plurais (DASP) que, entre outras atividades, iniciou a elaboração do censo demográfico das comunidades ao redor da USP. O censo contou com a atuação de aproximadamente 100 pessoas e tinha como objetivo o mapeamento mais preciso e detalhado dos territórios do Jardim Keralux, Vila Guaraciaba, Jardim São Remo e Sem Terra/Vila Clô, vizinhos da USP Leste e da Cidade Universitária. Coletou-se informações sobre moradores, casas, instituições, artistas, ativistas e até animais domésticos. Os resultados serão divulgados no site do IEA em junho, ainda sem data especificada.
Além do censo, o DASP teve duas outras ações: o ciclo de eventos Centralidades Periféricas e a plataforma de divulgação de ações de pesquisa, ensino e extensão Conexão USP-Periferias. O projeto de recenseamento das regiões começou apenas em 2019, mas teve suas atividades afetadas pela epidemia de coronavírus. Para a coleta de dados foram escalados 56 recenseadores, compostos por estudantes da graduação e pós-graduação da USP que tiveram algum tipo de vivência periférica, além de dez moradores dos locais recenseados, que atuaram como divulgadores do censo e mediadores das entrevistas.
De acordo com Érica Peçanha, antropóloga e participante do projeto, a etapa de pesquisa domiciliar do censo se baseou na metodologia de pesquisa desenvolvida pelo IBGE, com os territórios divididos por setores censitários em que cada pesquisador (a) foi responsável por uma unidade territorial. O levantamento domiciliar, que buscou reunir informações sobre as residências, seus moradores e os animais domésticos das comunidades, foi feito presencialmente. Já as informações socioculturais, que mapeavam instituições e ativistas, tiveram entrevistas remotas e autopreenchimento de questionário online devido a pandemia.
Limitações do Censo do IBGE
O censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) é a maior pesquisa demográfica feita atualmente e abrange todo o território brasileiro, sendo um importante instrumento de pesquisa territorial e populacional e elemento fundamental na elaboração de políticas públicas. No entanto, esse caráter amostral nacional impossibilita que o censo elabore perguntas mais específicas e direcionadas para realidades singulares. Daí a necessidade de um censo voltado exclusivamente para as periferias. De acordo com Peçanha, o censo realizado no entorno da USP “pretendeu dar conta de todo o universo pesquisado, visando fornecer um retrato mais preciso e detalhado dos territórios em foco”.
O censo da USP identificou 8.457 moradores e 2.889 domicílios na zona oeste, sendo 7.363 moradores em 2.496 domicílios na São Remo e 1.094 moradores e 393 domicílios na porção conhecida como Sem Terra. Já na zona leste foram 9.131 pessoas em 2.957 domicílios, sendo 8.418 moradores e 2.736 domicílios no Jardim Keralux e 713 moradores e 221 domicílios na Vila Guaraciaba. Já com relação ao mapeamento sociocultural, foram entrevistadas 53 pessoas/coletividades na zona oeste e 47 na zona leste. Além disso, coletou-se informações sobre animais domésticos (cães, gatos e pássaros). Em São Remo e Sem Terra, o número de cães e gatos (1.430) foi próximo ao de crianças (1.560). Já em Keralux e Vila Guaraciaba, foram registrados mais cães e gatos (2.814) do que crianças (1.570).
Narrativas Periféricas: entre pontes, conexões e saberes plurais.
A experiência de recensear essas comunidades resultou no livro “Narrativas Periféricas: entre pontes, conexões e saberes plurais”, organizado por Érica Peçanha. O livro concentra as percepções e experiências dos envolvidos no censo e traz depoimentos acerca do projeto e como o mesmo impactou a vida daqueles que estavam diretamente vinculados à pesquisa. De acordo com Peçanha, “a participação no projeto estava sendo bastante significativa na vida de seus pesquisadores e merecia um registro. As reflexões em torno do acesso e da experiência universitária de negros, pobres e moradores de periferias na USP, o cotidiano das favelas pesquisadas, as histórias de vida conhecidas por meio das entrevistas do censo, entre outros, eram temas que sempre apareciam nas reuniões regulares que organizamos ao longo do projeto”. O livro pode ser baixado gratuitamente no site do IEA (link).
Os resultados completos do censo serão disponibilizados em junho, em versão impressa e virtual. Os dados serão sistematizados e analisados por professores da USP, pesquisadores e moradores que participaram do recenseamento. Haverá ainda um aplicativo com o resumo dos resultados e um banco de dados de acesso aberto para pesquisas. Todo esse material estará disponível para consulta e download no site do IEA (iea.usp.br), e as cópias impressas serão distribuídas para os moradores e instituições dos territórios pesquisados.
Segundo Peçanha, durante o censo houve tensões decorrentes da relação dos territórios pesquisados com a USP. As comunidades ao redor da universidade são constantemente usadas como espaço de pesquisa e coleta de dados, sem que os resultados ou benefícios cheguem às populações locais ou aos participantes desses projetos. Nesse sentido, o censo foi também uma oportunidade de melhorar essas relações e construir parcerias com instituições e moradores. Além do objetivo maior que é subsidiar agendas e intervenções comunitárias naqueles territórios. “Esperamos que os resultados sejam apropriados pelas instituições e moradores e embasem novas ações de melhoria dos territórios, assim como desejamos que a comunidade USP utilize os dados e as análises do censo para elaborar projetos que façam sentido e dialoguem com as demandas locais”, sintetiza Érica.
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