Laboratório de dados e narrativas sobre favelas e periferias do Jacarezinho desenvolve trabalho para trazer informações acessíveis aos moradores
Por Gabriele Koga e Maria Vitória Faria
Segundo dados divulgados pelo Media Ownership Monitor Brasil (MOM-Brasil), a mídia brasileira apresenta grande concentração de audiência e de propriedade, alta concentração geográfica, falta de transparência e interferências nos âmbitos econômico, político e religioso.
O levantamento aponta que os quatro principais proprietários da mídia televisiva brasileira, os grupos Globo, Bandeirantes, a família Macedo, dona do grupo de rádio e televisão Record SA, e o grupo regional RBS, detém 70% da audiência nacional. Nas periferias e nos centros marginalizados, cresce a quantidade de movimentos que buscam a valorização da dimensão territorial do país e a sua diversidade regional, além da divulgação de informações acessíveis, coerentes e direcionadas àquelas pessoas que não são público-alvo da mídia hegemônica.
Nesse contexto, o LabJaca, laboratório de dados e narrativas sobre favelas e periferias do Jacarezinho, no Rio de Janeiro, utiliza o audiovisual como principal meio de divulgação científica de dados e da potencialização das narrativas locais. Em entrevista à Central Periférica, o jornalista e pesquisador Bruno Sousa, também coordenador de comunicação e cofundador do LabJaca, detalha o trabalho realizado pelo grupo a fim de desmarginalizar a narrativa do morador de favela, valorizar o conhecimento proveniente das comunidades e seus principais desafios no cenário atual.
Central Periférica — Como surgiu o projeto LabJaca?
Bruno — Eu e o grupo do LabJaca já tínhamos o desejo em 2019 de fundar uma agência de comunicação sobre favelas e periferias, só que, por diversas questões, não conseguimos tocar o projeto naquele ano. Em 2020, começou a pandemia da Covid-19, e, logo no início, a gente viu que várias favelas do Rio, que têm coletivos e instituições que já são estruturadas, já estavam se organizando para combater a Covid. No Jacarezinho, isso não estava acontecendo: a favela carece muito desse tipo de organização, e, nesse momento, a gente falou “a gente precisa fazer alguma coisa”. A partir disso, a gente começou a pedir dinheiro, fazer vaquinha on-line e conseguimos fazer essa distribuição, conscientização. Foi a partir desse start forçado da pandemia que a gente, de fato, começou.
Central Periférica — Quais ações já foram desenvolvidas no LabJaca?
Bruno — Com menos de um ano, a gente conseguiu trabalho em instituições muito importantes, a Fiocruz foi uma parceira nossa desde o início, e publicou estudos lá. A gente faz parte do Painel Unificador, e continua mapeando várias outras coisas. Inclusive, estamos para lançar uma pesquisa sobre dengue, em que a gente mapeou o Jacarezinho com a Fiocruz, além de trabalhos com a UNICEF e com outras empresas privadas que têm consultado a gente para fazer alguns levantamentos sobre esses indicadores sociais de favela. E, para além da Covid, fizemos uma conscientização da violência doméstica que estava aumentando muito no início da pandemia. E, no começo, naquele momento da distribuição da cesta básica, a gente decidiu passar um formulário que construiu junto com uma clínica que é nossa parceira, sobre casos suspeitos de Covid, coletando as pessoas que estavam com sintomas.
Central Periférica — Qual é a importância da divulgação correta de informações dentro das periferias?
Bruno — Nessa coleta que comentei, a gente percebeu que, no Jacarezinho, já tinha mais de uma centena de casos suspeitos, enquanto o Estado do Rio de Janeiro estava dando conta de menos de uma dezena, eram sete se não me engano. Dentro da favela, existe uma lenda entre os moradores de que o Jacarezinho tem mais de 90 mil moradores, o censo do IBGE [Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística] dá conta de 37 mil. A gente sabe que nem os moradores, nem o IBGE estão certos. A gente tem plena noção de que são mais de 37 mil, e, nesse momento, a gente pensou: “Se eles não sabem quantas pessoas moram aqui, não vai ter vacina para todo mundo, não vai ter escola para todo mundo, não vai ter política pública para todo mundo. Essas pessoas não fazem ideia nem de quantas estão tendo casos suspeitos de Covid, não tem nenhuma política pública específica”. Neste momento, não é só comunicação, é comunicação e dados. A gente sabe o caminho das pedras, sabe a importância dos dados, sabe como fazer e produzir.
“Se eles não sabem quantas pessoas moram aqui, não vai ter vacina para todo mundo, não vai ter escola para todo mundo, não vai ter política pública para todo mundo”
Central Periférica — De que forma você compreende a relação da mídia da favela com a grande mídia?
Bruno — Essa relação da mídia hegemônica com a mídia da favela é muito distante. Os jornalistas da favela são tratados como fonte, não como jornalistas. Eu, por diversas vezes, sou tratado como fonte. As pessoas chegam até mim, perguntam e, basicamente, querem que eu escreva a matéria para eles, que eu ache uma fonte aqui na favela, que eu faça o roteiro de entrevistas e eles só publicam como se eu não pudesse publicar aquilo, como se eu, como jornalista freelancer, não pudesse chegar no editor e oferecer aquela pauta. Então, existe esse desrespeito na categoria em vários âmbitos, a gente pode falar desse lugar de ausência e de crime que a favela é colocada, e, também, da falta de apuração e profissionalismo dos jornalistas em relação a isso. Têm rolado muitas ações para tentar mitigar isso, “ações mínimas”, que eu gosto de chamar de migalhas. Esses grupos gostam de chamar para fazer um programa ou outro sobre diversidade, te convidam para abrir uma coluna num jornal, mas não querem te remunerar. O LabJaca, inclusive, já foi convidado a ter colunas em jornais grandes do país e eu, como coordenador de comunicação, recusei. Não faz sentido para a gente escrever de graça mesmo sendo importante ocupar esse espaço, né? Ainda é uma relação muito adoecida, a gente está muitos anos-luz distantes de uma democracia na comunicação, no jornalismo.
Central Periférica — E qual é a sua visão sobre a divulgação de notícias pelo Brasil?
Bruno — Ainda é muito desigual, principalmente quando a gente fala da grande mídia. Se a gente assiste o Jornal Nacional, o Bonner não está dando boa noite pra minha mãe, está dando pra família média brasileira. A forma da comunicação desses jornais é direcionada a um público específico. Então, para além de todos os estereótipos que a favela é carregada, como lugar de ausência, de medo, de insegurança, de droga, de criminalidade, ainda tem essa questão desse atraso da educação e dessa lacuna de informação. A gente tem vários veículos comunitários que tentam suprir esse tipo de ausência, mas que não chega nem perto do poder de uma mídia hegemônica. Mesmo hoje em dia, com o acesso à internet, que tem um impacto gigantesco, a gente sabe que muita gente da favela não tem celular, e, quando tem, não tem acesso à internet adequada, vai ter acesso no máximo pro Whatsapp, esses recursos básicos que não permitem uma checagem de pesquisa, por exemplo. É a partir daí que as fake news se espalham. Os planos de internet para fazer uma pesquisa no Google são extremamente caros, mas para receber uma informação no Whatsapp é barato, então, você recebe e não consegue checar, e só repassa. E isso vira uma bola de neve gigantesca. Uma informação distorcida acaba se tornando uma verdade suprema naquele momento.
Central Periférica — Você se recorda de algum momento de irresponsabilidade da grande mídia para com a cobertura noticiosa da favela?
Bruno — É muito complicado. Primeiro, citando o caso da chacina do Jacarezinho, em todo espaço que eu vou, falo que a grande mídia é uma das maiores responsáveis pelos 28 mortos. A forma que um programa de televisão estava narrando a operação policial às 6 da manhã, na entrada da favela, foi grotesca, foi ridícula. Um repórter dentro de um helicóptero narrando, de forma super-sensacionalista, e mostrando com a câmera “criminosos fortemente armados pulando de uma laje pra outra fugindo da policia”, aí cortava e mostrava a polícia na entrada da favela do Jacarezinho com cara de idiota, sem conseguir tirar a barricada da frente. A partir do momento que você está tendo a cara da corporação, não só de um policial ou outro, mas da instituição Polícia Militar, e seu trabalho exposto, na maior emissora do país, em uma das maiores do mundo, ao vivo com cara de idiota, pois os traficantes estão conseguindo todos fugir enquanto você não consegue tirar uma barricada da frente da favela, você tem que dar respostas. Principalmente para as pessoas que acompanham seu trabalho enquanto instituição da polícia e legitimam esse trabalho. Você tinha que dar resposta para o cidadão de bem naquele momento, a polícia não podia ser feita de idiota daquela forma, ao vivo. A partir do momento que a polícia teve seu trabalho filmado e não estava conseguindo entrar na favela, ela teve que fazer de tudo para entrar ali e teve que dar uma resposta das mais enérgicas possíveis. Então, eu também atribuo as 28 mortes à cobertura que foi feita.
“Então, eu também atribuo as 28 mortes à cobertura que foi feita”
Central Periférica — Quais foram os principais impactos do LabJaca na comunidade?
Bruno — Eu acho que a gente tem algumas métricas de impacto diferentes. A gente mensura o impacto de diversas formas, por exemplo, o impacto territorial. Essas ações de conscientização da Covid foram muito grandes, a ponto da gente receber o prêmio de direitos humanos da ALERJ (Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro), homenagem da prefeitura do Rio. Mas o impacto que a gente sentiu dentro da favela do Jacarezinho foi muito maior quando a gente organizou um festival de grafite depois da chacina. Depois de tudo aquilo, a gente convidou mais de 30 grafiteiros renomados do país inteiro. O pessoal foi de graça. Pessoal muito grande que vende painel a 300 mil reais estava ali na favela do Jacarezinho. A gente pintou todos os muros possíveis que tinham sido cobertos por balas na operação, com arte, com vida, com cor. A gente sabia que a recepção seria muito boa do pessoal jovem, das crianças, mas a quantidade de gente mais velha, senhoras e senhores com mais de 80 anos, paravam a gente e falavam “ah passa lá na minha casa depois, pode pintar lá na frente também”. Todo mundo queria que a gente pintasse todas as casas, virou um evento gigantesco. A gente esperava uma resposta mais conservadora, mais afastada. Mas todo mundo só queria se sentir abraçado e acolhido. Acho que o grafitaço foi de extrema importância pra favela naquele momento: foi um respiro, um sopro de autoestima que o pessoal precisava.
Teve também o vídeo que a gente fez relacionado à chacina, em que comparou os custos dos materiais usados na operação com políticas públicas básicas. Ele foi bem compartilhado não só pelas nossas páginas, mas por outros coletivos. Foi interessante, porque eram dados básicos que são abertos e a população tem o direito de saber, mas ela não sabe onde procurar. Por exemplo, o preço de um fuzil é o mesmo de um aluno da rede pública durante o ano contado materiais, alimentação e transporte; com o preço de um caveirão, a gente conseguiria transformar o Jacarezinho na maior galeria de arte a céu aberto, fazendo os grafites; com o preço do helicóptero da polícia, a gente conseguiria distribuir auxílio emergencial pra favela de Jacarezinho e Manguinhos inteira, todo mundo das duas favelas ia receber auxílio.
“O preço de um fuzil é o mesmo de um aluno da rede pública durante o ano contado materiais, alimentação e transporte; com o preço de um caveirão, a gente conseguiria transformar o Jacarezinho na maior galeria de arte a céu aberto [...]; com o preço do helicóptero da polícia, a gente conseguiria distribuir auxílio emergencial pra favela de Jacarezinho e Manguinhos inteira”
Central Periférica — Como o LabJaca atua na divulgação de informações na comunidade?
Bruno — O que a gente tem tentado fazer no LabJaca é esse trabalho de comunicação com educação, principalmente. Esse é o nosso objetivo: transformar os dados em algo próximo, acessível pras pessoas entenderem. A gente entende que boa parte da população é analfabeta, boa parte não consegue interpretar as coisas, muito menos gráficos, e isso a gente tira de exemplos de familiares próximos. Então tem que traduzir isso da forma mais palpável possível, e a gente encontrou esse caminho no audiovisual e nessas ferramentas para trazer elementos da cultura pop. Ao invés de falar que são 10 hectares, falar que são 40 maracanãs. Tentamos mitigar esses espaços de ausência da melhor forma, seja mostrando as informações importantes, como temos feito agora com um quadro que acabamos de lançar, o Política em 30. Foi só uma coisa super-rápida que a gente falou “cara, tem muita coisa acontecendo, muita informação tá se perdendo e a gente não pode deixar o pessoal não ver isso. Está acabando o auxílio emergencial, o Bolsa Família, a gasolina está 100 reais e o pessoal não está conseguindo acompanhar o ritmo desse desastre”. Então, a gente criou esse modelinho básico onde a gente só pega as principais notícias da semana, grava 2 ou 3 na chamadinha de 30s para reels. A gente fala notícias que são super importantes e coloca nos comentários mais algumas. Foi a forma que a gente achou de veicular, todo sábado e domingo, os principais assuntos da semana, para esse público das favelas, principalmente dentro do Jacarezinho, para estarem se informando e não perderem esse momento que a gente tá vivendo. É complicado, porque ainda existe uma lacuna gigantesca. A gente precisa muito que jornais como Voz das Comunidades, Maré de Notícia, se multipliquem dentro de todas essas favelas, porque são profissionais de jornalismo ímpares. A gente precisa dar espaço e precisa que isso venha com o Estado. Esperamos respeito com a imprensa, porque, nesse governo, a gente não tem o mínimo de respeito com a imprensa. Em um segundo momento, investimento nessas mídias alternativas, tirar um pouco desse poder dessas mídias hegemônicas. Descentralizar o poder é necessário e, dentro da comunicação, é mais necessário que em qualquer outro campo.
Central Periférica — Como funciona a apuração das notícias para torná-las acessíveis para o povo e a comunidade?
Bruno — A nossa checagem de informações sempre passa pela mão de três ou quatro pessoas e passa pela minha mão no início e no fim de cada apuração, porque a gente sabe que é um coletivo, uma instituição de favela e boa parte das nossas produções vai ser questionada e atacada, assim como a produção cidadã é atacada, independente de qual instituição você esteja. As nossas metodologias são todas replicáveis. Então, se você olhar qualquer levantamento de dados que a gente fez, você consegue replicar no seu bairro, por exemplo, e a gente faz questão de deixar essa nota metodológica de onde tirou essas informações, como chegou até aquilo. É, literalmente, um passo a passo desenhado para a gente se blindar dessas possíveis críticas. O primeiro passo é que a gente valoriza a produção científica e cidadã de dados dentro das favelas. O LabJaca é um grupo 99,9% negro, que já é muito diferente da maioria dos espaços que a gente vê e a gente traz essa questão do ancestral também, com respeito à cultura e à produção de conhecimento que sempre existiam nos lugares. Quando a gente olha para a grande mídia, por exemplo, um cara que nunca pisou na favela é especialista sobre aquele assunto e dá aquela visão de cima de super especialista falando um monte de besteira, enquanto a pessoa que passa por aquilo todo dia não tá sendo ouvida, ou pelo menos, não tá sendo ouvida com a mesma importância. Então, uma das primeiras coisas que a gente tem nessa nossa apuração é respeitar o conhecimento dos moradores da favela, não só do Jacarezinho, mas de qualquer outra, e produzir o conhecimento ao lado desse morador, porque ele tá ali, ele sabe quais são as necessidades dele, ele sabe o que ele precisa. Você pode chegar e falar para essa pessoa agora o que ela precisa, que é: estudar e terminar a escola, porque é isso que vai dar um futuro melhor para ela. Ela vai falar “cara, eu preciso agora de um prato de comida, porque eu não tenho e, senão, eu nem vou para a escola”. Não adianta você tentar fazer imposições. A gente tenta valorizar muito esse conhecimento dos moradores, obviamente sempre respeitando todo o rigor da ciência.
“Cara, eu preciso agora de um prato de comida, porque eu não tenho e, senão, eu nem vou para a escola”
Central Periférica — O LabJaca possui recursos próprios para o sustento?
Bruno — A gente está com uma parceria com a Benfeitoria, no final de todo ano fazemos mais uma arrecadação, colhe um valor e a benfeitoria triplica, até 90 mil reais no máximo, e isso tem garantido nossa sustentabilidade em alguns sentidos. É uma compra de equipamento, um financiamento de um estudo ou outro, como é o caso da campanha que vamos lançar agora esse mês para financiar a nossa pesquisa de Covid no ano que vem, onde vamos nos dedicar o ano inteiro a mapear os impactos socioeconômicos da Covid, não só essa questão da saúde, mas também quais os impactos na sociedade, na renda das famílias. Então, a gente tem se mantido assim, com alguns trabalhos pontuais. Infelizmente, ainda não tem uma organização grande que investe dinheiro no projeto.
Central Periférica — Gostaria de acrescentar algo?
Bruno — A gente precisa valorizar a produção de conhecimento dentro das favelas e de territórios na periferia, fora dos grandes centros urbanos também, porque a gente esquece das zonas rurais e tudo o que é essa diversidade do Brasil, né? A gente precisa valorizar o jornalismo principalmente. Hoje, a gente vive tempos de ataque à nossa profissão, isso é triste demais. O Brasil é um país muito violento com comunicadores e jornalistas. A gente precisa recuperar essa credibilidade. Eu sou uma pessoa extremamente descrente, mas preciso acreditar que as coisas realmente vão melhorar e a gente vai conseguir assumir esses espaços também, pautando a diversidade necessária para a profissão de jornalismo.
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