A contratação de profissionais estrangeiros é a maior preocupação, mesmo que a distribuição de profissionais nacionais seja desigual entre as regiões
Por Evan Carvalho, Mirela Costa, Natalia Nogueira, Nicolas Dalmolim, Nicolle Martins e Pedro Morani
O Mais Médicos está de volta depois de quatro anos desativado. Criado na administração de Dilma Rousseff (PT) em 2013, o programa nasceu com o objetivo de garantir atendimento médico primário a todos os brasileiros, principalmente os de áreas periféricas e interioranas, historicamente negligenciadas. Desde seu surgimento, o projeto foi criticado por representantes médicos por permitir a atuação de estrangeiros sem o Revalida, o exame anual de validação de diplomas expedidos por universidades do exterior.
Em seu primeiro ano de mandato, Jair Bolsonaro (PL) revogou o programa, substituindo-o pelo Médicos Pelo Brasil. Uma das justificativas dadas pelo então mandatário era o suposto uso do Mais Médicos para beneficiar o governo cubano, alinhado politicamente com as administrações Lula e Dilma. Segundo a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), ao menos onze mil profissionais estrangeiros atuantes no programa vieram de Cuba. Políticos petistas, porém, sempre negaram qualquer interesse secundário na parceria.
[Divulgação/Governo Federal - Folha de S. Paulo]
No último dia 20 de março, o Ministério da Saúde anunciou o retorno do programa. As missões do decreto do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) continuam semelhantes às de dez anos atrás. Na cerimônia de relançamento, Lula antecipou-se às críticas, e afirmou: “Queremos que no novo Mais Médicos todos os médicos sejam brasileiros. Se não for possível, chamaremos médicos estrangeiros que moram no Brasil. O que importa mais é a nacionalidade do paciente”.
As Reações acerca do Programa
O retorno do programa não foi bem recebido por órgãos da classe médica, como o Conselho Federal de Medicina (CFM). Em nota, o CFM afirmou que sua principal preocupação é com a contratação de médicos estrangeiros, pois a necessidade de revalidação se faz essencial ao pleno exercício da profissão. O Conselho também defendeu “estímulos à adesão dos médicos graduados no Brasil para atuação em locais remotos”.
A Associação Médica Brasileira (AMB) expressou, também por meio de uma nota, inquietação semelhante com a Medida Provisória que reativa o programa. A organização alertou para a exposição de pacientes a “profissionais sem a comprovada confirmação das competências exigidas para o exercício da Medicina em nosso país”.
O enfermeiro Ricardo*, que tem experiência na área da saúde das redes pública e privada, relata que, embora a formação de médicos caminhe para um crescimento considerável, a carência de profissionais em regiões periféricas e interioranas se dá, sobretudo, devido à falta de infraestrutura nas unidades de saúde e à violência. Ao passo que médicos formados disputam por maiores retornos financeiros nos grandes centros urbanos sudestinos, regiões mais afastadas sequer contam com equipes suficientes para atendimento primário. “Onde eu trabalho hoje [hospital particular], o médico ganha um salário de R$ 2.200 em 12 horas. Já no interior do Rio de Janeiro, por exemplo, eles estão pagando R$ 800 (no plantão de 12h)”, afirma.
[Divulgação/Demografia Médica Brasileira 2023/Conselho Federal de Medicina]
Ainda que o programa visasse suprir a demanda regional com o amparo de médicos estrangeiros, Ricardo também destaca a ausência de mecanismos voltados à adaptação linguística e cultural dos profissionais. Segundo o entrevistado, dificuldades na compreensão e interpretação da língua portuguesa impactam a prescrição de medicamentos, de modo a causar danos à saúde dos pacientes.
Tendo em vista a saúde como direito constitucional, o enfermeiro afirma ser válido o retorno do programa, desde que sejam revisadas deficiências relacionadas à estrutura de suporte e estímulo aos profissionais da área.
Maria Margarene Ferreira, moradora de Icaraí, distrito do interior da Bahia, afirma já ter sido atendida pelo Mais Médicos. Na época em que era assistida, relata que o atendimento por parte de profissionais do programa ocorria três vezes por semana e supria a insuficiência médica na região. De acordo com a entrevistada, os médicos estabeleciam uma comunicação efetiva com os pacientes, o que viabiliza a plena compreensão de processos como indicação de diagnósticos e prescrição de medicamentos.
Taciele Macabeu, moradora da mesma região, lembra do programa de forma positiva. Ela acredita que o programa tenha sido benéfico para a região, e diz se lembrar, mesmo depois de muito tempo, da fisionomia e da gentileza do médico que a atendeu. "Eu acredito que o programa Mais Médicos favoreceu muito a minha região, justamente porque às vezes, nas cidades pequenas, povoado, município, é um pouco difícil encontrar algum médico que queira trabalhar."
[Divulgação/Demografia Médica Brasileira 2023/Conselho Federal de Medicina]
Um estudo realizado pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) e pela Associação Médica Brasileira (AMB) aponta que, entre 2000 e 2023, o número de médicos no Brasil dobrou. A distribuição deles nas regiões, porém, é extremamente desigual: enquanto nas capitais brasileiras a média de profissionais é de 6,13 para cada mil habitantes, no interior o número é de apenas 1,84. Nas regiões metropolitanas, onde se concentram as periferias, o índice é de 1,14.
(*) O entrevistado teve seu nome preservado e foi tratado como Ricardo.
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